segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Falta e estilo

Atualmente, na arte e fora dela, há uma forte tendência de cobrir as “faltas”, falhas e imperfeições com palavras. Uma aluna sobre o assunto soltou uma frase divertida e irônica de Mario Quintana que bem retrata isso. “Estilo é uma dificuldade de expressão” foi o que respondeu quando inquirido sobre o que era estilo.
Certa vez, depois da sessão livre de modelo vivo no ateliê, dispusemos os desenhos feitos para uma análise técnica. Perguntei então aos desenhistas “visitantes” (não-alunos do curso) se queriam que fizesse uma avaliação, visto que não eram obrigados a se expor dessa maneira a estranhos. Responderam que sim. Ao comentar o trabalho de um deles, dizendo que ajudaria o treinamento de estímulo da percepção visual (para evitar as formas estereotipadas oriundas do lado racional) e também o estudo de anatomia para representar melhor as formas (da musculatura e das articulações) e as proporções do corpo humano, ela respondeu: “não, é que meu desenho é de escultora”.
Por alguns instantes, pensei “o que isto significa?” Na maioria das vezes, podemos perceber que há uma diferença clara entre o desenho artístico e o desenho de ilustração por partirem de bases e lógicas de construção diferentes (e aí, não vai nenhum juízo de valor), mas o que é desenho de escultor? O que isso implica? O desenho de escultor é aquele que contem erros grosseiros de construção, de anatomia, proporção e forma? Quando contemplamos os desenhos de Michelangelo, Bernini, Rodin, Carpeaux, entre outros, realmente somos capazes de distinguirmos os pintores dos escultores? Claro que não (para se ter uma ideia da inconsistência de tal argumento, basta recorrer ao livro Modelling and Sculpting the Human Figure, no qual Lanteri, logo na introdução, reitera que o escultor deveria desenhar tanto quanto ou mais que o próprio pintor). No fundo, foi uma estratégia (inconsciente e amplamente difundida) que pode ser dividida em dois movimentos.
- Primeiro movimento: preencher a “falta” (de conhecimento teórico ou técnico, de prática, vivência, disciplina, etc), falha ou erro com palavras ou retórica (nos casos mais sofisticados).
- Segundo movimento: transformar a mesma falta em virtude, tida como "estilo" ou "qualidade estética". A qualidade da “metamorfose” é diretamente proporcional à capacidade intelectual de elaboração verbal do executor. Ora, lendo as entrelinhas, se o desenho é de escultor e eu sou professor de pintura, sou eu quem não entende o que ela está fazendo ou querendo expressar. Sou eu quem deve se informar melhor acerca disso, saber mais sobre os atributos do desenho de escultor. Moral da história: a última coisa que cabe ao aluno é estudar mais para melhorar a expressão.
Se isso acontece no nível do aprendizado, o mesmo pode ser verificado também mais tarde, com os profissionais, pois não é o fato de se auto-intitularem artistas que o problema dissolver-se-á.
O que vivemos hoje, em última instância, é a instauração de uma grave situação de incongruência entre os dados concretos visíveis à nossa frente, no caso, a obra e o que é dito sobre ela (que deve guiar a apreciação do espectador), cuja característica principal é a prevalência da palavra sobre a imagem.
Sobra ao espectador independente e ao aprendiz ou artista sérios, enfim, para aqueles que preferem ficar com o que veem e não com o que deveriam ver, a convicção solitária de que, numa obra-de-arte sincera, a boa intenção do autor não é suficiente. O trabalho deve sustentar-se com recursos próprios sem o auxílio externo, imprescindível, do discurso.

Todo esse monólogo me lembra uma frase do mestre zen budista no Zen em Quadrinhos (Tsai Chih Chung, Ediouro): “Sócrates disse que se as pessoas soubessem o que deveriam fazer, o fariam; mas ele subestimou a capacidade que elas tem de se enganar. Todos sabem o que deveriam fazer, mas quantos o fazem?”

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